Pesquisadora e atriz conta das inspirações e dos desafios de encenar a vida de doentes mentais que estão em situação de rua
07/01/2013
Eduardo Sales de Lima,
da Reportagem
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A pesquisadora e atriz Evinha Sampaio em cena do espetáculo Dramaturgia de uma Nau de Loucos: uma possibilidade cênica - Fotos: Miguel Murrua |
Atriz há quase quarenta anos, Evinha Sampaio nunca se dedicou a carreira comercial. Graduada em Ciências Sociais e formada pela Escola de Arte Dramática da USP (EAD), em 2014 ela vai defender sua tese de doutorado Dramaturgia de uma Nau de Loucos: uma possibilidade cênica. Basicamente, o projeto abrange na teoria e na prática (por meio de apresentações cênicas) os “loucos que estão em nossa porta, na nossa calçada, nos nossos canteiros, no asfalto”, e que estão à deriva. As encenações ocorrem no formato de teatro documentário em escolas, Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), e organizações inseridas no contexto.
Ao decorrer de seus estudos e no seu contato com esse mundo, Evinha critica a atuação de alguns CAPs, e das pessoas ditas normais que, muitas vezes, descarregam nos doentes mentais suas frustrações e angústias.
Brasil de Fato – O que é seu projeto?
Evinha Sampaio – Tudo começou quando eu percebi um outro corpo morando nas ruas de São Paulo. Eu identifiquei que não era o corpo do catador de lixo, não era o “crackeiro”, não era o morador de rua, não era o bêbado. Assisti a alguns surtos psicóticos. Fiquei chocada com as cenas que vi e que me deprimiam. Eu não sabia o que e como fazer, como ajudar; brasileiros iguais a mim numa situação dessas. Eu não faço nada e fico nessa de reclamar, de ficar chocada? E daí?
Mas sobre o que é exatamente seu projeto de pesquisa para o doutorado? Eu gostaria de fazer um projeto em que eu partisse do movimento do corpolouco. É o corpo do doente mental que vive na cidade. O nome do meu projeto é Dramaturgia de uma Nau de Loucos: uma possibilidade cênica. Fiz uma pesquisa teórica, li o História da Loucura, do Michel Foucalt. E neste livro ele narra toda a história da loucura, desde o século 11. Ele conta que, na Idade Média, as cidades faziam uma varredura, uma limpeza; pegavam todos aqueles que eram considerados loucos, os colocavam num navio e lançavam esse navio em alto-mar, a deriva.
O resultado de minha pesquisa teórica chama-se Nau do Asfalto porque tem a ver com essa nau que ficava em alto-mar. Hoje, esses loucos estão em nossa porta, na nossa calçada, nos nossos canteiros, no asfalto, e à deriva também.
A professora Helena Katz, da PUC, minha co-orientadora e crítica de dança, ao lado da Cristine Greiner, criou uma teoria chamada teoria Corpo-Mídia, que fundamenta essa pesquisa corporal que fiz. A teoria se fundamenta na neurociência, na semiologia e no darwinismo. Ou seja, diz que qualquer corpo está falando de si mesmo, qualquer corpo está em processo permanente de atualização de informações. Por exemplo, eu observei o corpolouco na rua, ele modificou o meu corpo, ele me atualizou, porque a percepção daquele corpo me transformou. Enquanto que eu transformei aquele corpo e aquele ambiente também. É uma relação de temperatura, de contato com o chão, de olhares; é uma troca de informações permanente e ininterrupta. Mesmo depois que você morre, seu corpo transforma. A parte corporal eu fundamento nessa teoria. A parte cênica do trabalho, eu me baseei principalmente na tese de livre-docência do meu orientador, Armando Sérgio da Silva, que é Interpretação: Uma oficina da essência. Ele fala de anteparos, da construção dos signos e da impressão digital do ator. Eu uso tudo isso quando estou na cena. Observei o movimento do corpolouco, transformei esse movimento no meu corpo, levei para a cena. Levei objetos cênicos que eu vi na rua como plástico, mala velha, papelão, restos de materiais que posso reutilizar, cabo de vassoura. Um monte de coisas que eu chamo de anteparos, elementos que eu troco em cena e me comunico com eles. Esses instrumentos me trazem sensações, me obrigam a fazer certos gestos, que adaptei daquele movimento do corpo que eu vi na rua e com isso fui construindo o meu trabalho.
Essa exclusão é inerente à parte dos princípios de nossa sociedade contemporânea. Como você trata essa relação das pessoas ditas normais com esse outro, no caso, os doentes mentais na rua?
Elas [pessoas normais] agridem algo que está fora e ao mesmo tempo dentro delas: o “outro”.
Depois desses navios vieram os manicômios, onde isolavam essas pessoas. É um “alívio” não ver o problema porque está longe, preso, e raramente você vai visitar o manicômio.
Há casos e casos. De fato, há pessoas que têm muita dificuldade de conviver socialmente, em que a intensidade da doença é muito grande. Eles têm que ter cuidados especiais e pessoas dedicadas a cuidar o dia inteiro deles, não tem como negar isso.
E como você vê a proteção, a participação do Estado em relação a essas pessoas?
A Lei Antimanicomial há mais de dez anos foi criada, há inúmeros movimentos, mas poucas conquistas. Nos Caps, dependendo do profissional, as coisas podem acontecer de um jeito ou de outro. Então, eu vejo que há uma variação na qualidade do atendimento de um Caps para o outro. E isso não é uma sensação. São depoimentos que tenho tido de alguns usuários.
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Objetivo do trabalho é levar o debate às pessoas - Foto: Miguel Murrua |
O Raimundo Arruda Sobrinho é um morador de rua com problemas mentais que morava num canteiro da [Avenida] Pedroso de Morais. Esse homem tem mais de 70 anos. Viveu ali mais de dez anos e ninguém conseguiu tirá-lo de lá. Agora, uma moça chamada Shalla Monteiro criou um Facebook e um blog sobre o Raimundo. Estou falando dele porque o texto do Raimundo está dentro do meu trabalho. Eu retirei esse texto de um documentário chamadoOmissão de socorro, de Olívio Tavares de Araújo.
A Shalla Monteiro conseguiu retirar o Raimundo de lá e levar para o Caps Itaim. Mas por que só agora isso aconteceu? Depois de 10 anos? O Caps não atua como deveria. Teria que abordar, tentar convencer, quebrar a resistência. Ele está reaprendendo a utilizar o banheiro e todos os modos de higiene pessoal, com todos os dentes a serem tratados. Felizmente, até agora, ele não teve momentos de depressão e continua escrevendo muito. Já houve um reencontro com a família. Estão providenciando documentos para ele. É como se você pegasse uma criança nesse momento, porque ele estava abandonado. Imagina quantos casos semelhantes não temos por aí.
Quanto à sua peça, parece não ser a busca por um “final feliz”.
O trabalho que estou fazendo é um teatro documentário. Eu não estou interpretando o louco. Eu não estou criando uma personagem como propõe Stanislavisk. O teatro documentário coloca a coisa como ela é. Os textos do Raimundo estão do jeito que ele fala, sem vírgula a mais ou a menos. E eu digo ao público que o texto dele e da Luciana (outra moradora de rua) são textos de doentes mentais.
Eu não imito o movimento que observei. Ele foi adaptado no meu corpo. Ele é transformado cada vez que eu mostro. Eu apenas pego aquele texto, me relaciono com aqueles anteparos que eu trago, que são vários, e coloco esses movimentos. Isso tudo cria uma dramaturgia cênica, uma história está sendo contada ali. Só que não é uma história com começo meio e fim. E para a gente é difícil aceitar e compreender isso, mas são assim. Não existe essa coisa de final feliz. Muito pelo contrário, porque quando termina eu faço a abertura do debate. Ou seja, há essa diferença: eu mostro, eu não interpreto.
Não se trata de uma interpretação porque a personagem não é fictícia?
É um documentário, só que teatral. No vídeo, alguém filma as pessoas reais, com depoimentos. E é claro que ele vai editar isso. Eu também faço isso. Vou colocar meu olhar sobre o que eu vi na rua. Mas enquanto texto escrito falado por eles não estou editando. E eu não estou imitando eles, mas readaptando os gestos deles no meu corpo. Eu também não estou procurando saber da vida do Raimundo, da Luciana, eu não criei a personagem para a interpretação cênica. Eu não fiz esse trabalho enquanto atriz. Mas a percepção é de quem está assistindo.
Fiz essa pergunta do “final feliz” porque a impressão é que a “cura” dos doentes mentais parece se inserir num processo.
É uma doença que a pessoa tem que conviver a vida toda. Mas tem que ter os cuidados. Tomar os remédios, continuar com atividade social, com o atendimento psicossocial. Daí a importância dos Caps.
Existe uma similaridade nas trajetórias dessas pessoas doentes mentais que vivem nas ruas? Sobretudo no que se refere ao processo de rompimento com suas famílias?
Eu posso te dizer que cada um tem sua história. Não dá para dizer que existe um motivo dominante para que se chegue a loucura. Pode ser um amor perdido, maus-tratos pelos pais, por alguém da família. Há pessoas que já podem ter uma pré-disposição genética. As drogas também levam à loucura. Cada um tem sua história.
Qual a sua expectativa em relação a este trabalho?
Não tenho essa ambição de sucesso. Não estou nem aí para o mercado. Mas tenho objetivos em relação ao trabalho que é levar o debate às pessoas e que ele sirva para mudar algo dentro de mim e dentro das pessoas que vão assistir. Que aprendam a lidar com esse preconceito que eu, como indivíduo, não nego que tenho, o de chegar perto, de conhecer. Mas agora eu já dei alguns passos em relação a esse preconceito dentro de mim. Eu me aproximei mais dessas pessoas, troco e-mails com eles. Não tem como negar que eles têm um jeito diferente do nosso, agora você tem que saber lidar com isso.